A
Doçaria Madeirense
A doçaria madeirense
está diacronicamente conectada com o cultivo local da cana sacarina, iniciado
na segunda metade do século XV, e com os demais produtos que foram sendo
experimentados nas novas terras de cultivo de origem vulcânica. O comércio
intercontinental com a Europa, Ásia e África proporcionou a troca e o usufruto
de novos produtos, obtendo-se um receituário mais diversificado e não menos
exótico.
Neste breve apontamento
diacrónico sobre a doçaria madeirense conviver-se-á com um universo “sacarinoso”
de fragrâncias ensaiadas em espaços conventuais, aristocráticos e populares. A
diversidade terminológica dos “manjares”
mencionados na documentação dos séculos XVI e XVII contrasta com o receituário
existente nos dias de hoje. Resta-nos o bolo e as broas de mel, autênticos Ex Libris da doçaria madeirense.
Os
primórdios do povoamento: a experimentação da cana e a produção do açúcar
O
processo do povoamento do Arquipélago da Madeira terá ocorrido nos primeiros
trinta anos do século XV, após os navegadores portugueses Tristão Vaz Teixeira,
João Gonçalves Zarco e Bartolomeu Perestrelo terem aportado às ilhas por volta
do ano de 1419.
Nessa
fase de infraestruturação de uma terra até então desabitada, experimentaram-se produtos,
matérias-primas e novas culturas, entre as quais a plantação de cana-de-açúcar.
A transformação da paisagem agrícola pelo cultivo da cana, sobretudo, nas
vertentes meridionais e mais timidamente a Nordeste, despoletou um conjunto de
transformações que se reflectiram ao nível social (escravatura), económico (com
a aquisição de riqueza materializada no património imóvel e móvel, através de
bens sumptuosos que chegavam à ilha) e tecnológico (maquinarias de engenho movidas
a água). As duas capitanias madeirenses, Funchal e Machico, apresentavam
valores de produção distintos e que derivavam da variedade de condições
orográficas, climáticas e mesológicas. Parece certo que uma parte significativa
da extraordinária construção pétrea dos actuais socalcos (poios) que suportam
as terras para o cultivo remonta a esse período áureo da cultura sacarina.
Os
escritos do século XV fazem inúmeras alusões à riqueza alimentar da Ilha da
Madeira, em especial à abundância de açúcar. Entre vários, lê-se na Crónica de Nuremberg [1492], uma alusão
à qualidade do “ouro branco”: “produz
vários fructos, principalmente a canna saccharina, que traz á ilha
consideráveis lucros, inundando a Europa de óptimo assucar da Madeira, que é
conhecido por assucar da Madeira” (AA, 1981, I: 42).
Sendo
um produto assumidamente virado para a exportação e uma fonte de riqueza da
ilha nos séculos XV e XVI, o açúcar assume
uma óptica de mercado, tendo como destino os portos do Reino, da Europa
mediterrânica e nórdica. A dinamização comercial gerada pela sua produção
trouxe uma crescente afluência de mercadores, sobretudo de estrangeiros
(italianos, flamengos, franceses), que acabaram por deter o maior volume de transacções
(RAU, MACEDO, 1962). Deste modo, acompanhamos o açúcar a ser exportado para
Bristol, Flandres, Génova, Roma, Livorne, Veneza, Bretanha, Constantinopla, (MIGUEL,
1955, n.º19:14-15). Paralelamente assume, também, uma maior expressão ao nível
do consumo interno, em boa parte devido aos novos hábitos alimentares e ao
fabrico de conservas de fruta, mas unicamente para os sectores mais abastados
da população insular, dado ao preço praticado.
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Fig.
1 – Convento de Santa Clara, Funchal. Foto Arquivo Regional da Madeira.
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Fig.
2. Pormenor do fabrico do açúcar, Tractatus
de Herbis, Dioscorides, século XIV. Propriedade Biblioteca Estense.
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Doces e conservas: manufactura
caseira e conventual
A
frequência do açúcar no mercado insular e os habituais donativos para as
instituições de assistência locais estarão na origem da doçaria conventual. Como
já se referiu, o produto açucarado não foi apenas exportado como matéria-prima
mas, também, em conservas de açúcar, ou seja, frutas cristalizadas e compotas.
A manufactura destas
conservas era particularmente caseira e ocupou, em termos de laboração, a
população local. As primeiras referências documentais que se conhecem datam de
meados do século XV (1469), sendo implícita uma tarefa predominantemente
feminina, independentemente da condição social: “molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares
bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes
proveytos que dam remedio a suyas vidas e dam grande nome a terra nas partes
onde vam”. (AHM, Vol. XV, doc.
N.º18: 48). Nos
séculos seguintes (XVI e XVII) continuaram a fabricar-se conservas, em
complemento com o açúcar oriundo do Brasil, como testemunhou o médico Hans
Sloane na sua visita à Madeira em 1687: “alguns
doces de conserva com marmelada, doce de cidra,
que são feitos com açúcar do Brasil ou da própria ilha.” (SLOANE, 1981
[1687]:159).
A pouco e pouco, a
produção da doçaria especializa-se nos ambientes conventuais pelas mãos das
mestras doceiras. O registo de compras de açúcar local e brasileiro (incluindo
frutas para conservas) nos livros de despesa das instituições religiosas do
Funchal (conventos de Santa Clara, Encarnação, Mercês, Misericórdia e
Recolhimento do Bom Jesus) denotam esse hábito doceiro. A exuberância das
denominações concorre com o imaginário visual: manjar branco, suspiros,
argolinhas, cordeiros de ovos, toucinho-do-céu, papos de anjo e barrigas de
freiras (TRUEVA, 1987: 15).
É merecido destacar
neste ambiente claustral as produções do Convento de Santa Clara. Uma vez mais,
servimo-nos do depoimento de Sloane, que numa ida ao convento em 1687, e ao
provar os doces e compotas, atestou: “nunca
vi coisas tão boas “, (SLOANE, 1981:163). As freiras franciscanas
confeccionavam conservas de açúcar e bolo de mel, para consumo interno e externo,
nomeadamente para o Brasil, Flandres e Países Baixos (SOUSA, 2008: 34). No
século XVII essa lavra constituía uma importante fonte de receita. Nos
documentos desse período as freiras distinguiam os doces (“papos de anjo”, “barrigas de
freira”, “bolo de mel”), das
conservas de açúcar (fruta cristalizada, talos de alface e compotas), (SOUSA,
2008: 34; SOUSA, 1984: 8). Para os inícios do século XIX (1813-1814) a relação
de despesa e de receita demonstra a diversidade dos doces para ocasiões
festivas. Pelo Advento e Entrudo, sonhos, talhadas de amêndoa, broas e cavacas.
Pelo Natal (argolinhas, alféloas) e noutras efemérides religiosas (pastéis,
fartes, bolo doce, rapadura, batatada, alféloa (massa de açúcar ou melaço),
desfeitos, pão-de-ló, marmelada, arroz doce, pratinho doce, pão de leite, bolo
de mel, pastelão, gila, queijadas e canadas de mel, NASCIMENTO, 1937: 72-75).
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Fig. 3 - Cidra cristalizada.
Foto Isabel Gouveia.
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O
Rei Dom Manuel: um apreciador da doçaria madeirense
D. Manuel, além de ter adoptado
uma significativa protecção à manufactura de conservas, foi um habitual
consumidor das doçarias madeirenses. O regime protecionista do monarca estendeu-se
fundamentalmente às medidas para garantir a exportação e a confecção das
conservas de fruta diversa pelos naturais da ilha: “(…) em toda essa ilha não possa
fazer ninguém conservas, alfenim, confeitos nem outra fruta de açúcar, somente
os vizinhos e naturais da dita ilha (…)”, (Apud, SOUSA, 1983: 6). É
importante referir que a procura desta mercadoria para o abastecimento das
provisões das embarcações que aportavam no porto do Funchal devia-se, sobretudo,
ao excelente teor de vitamina C (nomeadamente as cascas de cidra e de limão),
essencial ao combate ao escorbuto (RIBEIRO, 1993: 345-352; SOUSA, 1984: 6-9;
GODINHO, 1985: 80-81).
O consumo da Casa Real
Portuguesa é-nos dado a conhecer pelo cronista de D. Manuel, Damião de Góis: “Nas vesperas do Natal consoava publicamente
em sala, com todo o Estado de porteiros de maçareis darmas trombetas, atabales,
charamellas, e em quanto consoava davam de consoar a todolos senhores, fidalgos
e cavalleiros, e escudeiros que estavam na salla, na qual se ajuntavam naquelle
dia todos los que andavam na Corte por saberem o gosto que el-Rei levava em
fazer este banquete, que todo era de frutas verdes e dasucar, e de conservas,
que lhe traziam da ilha da madeira, depois desta consoada (…)”, (GOES, 1911: 92).
As
formas para o pão de açúcar
A azáfama do cultivo e do
comércio do açúcar na Época Moderna insular despoletou a importação de um
recipiente cerâmico de formato cónico (forma de pão de açúcar) que, de acordo
com os novos dados arqueológicos e arqueométricos, terá sido importado das
oficinas oláricas de Aveiro e de Coimbra.
A indispensabilidade de
grandes quantidades de formas para a lavra dos engenhos e, eventualmente, para as
lides culinárias caseiras ou conventuais - onde se admite a sua paralela
utilização para a confecção de derivados ou para refinação do açúcar - criou,
em contexto arqueológico, abundantes indícios materiais. Por essa razão, se tem
considerado que a forma cónica do pão de açúcar, de diferentes tamanhos e com
uma perfuração no vértice, é o indicador físico mais característico da
arqueologia madeirense. Regra geral, eram peças que se destinavam a verter os
líquidos resultantes do processo de purgação do açúcar que, depois de extraído
da forma, era cuidadosamente separado, de acordo com a sua qualidade, e em
seguida transportado em caixas de madeira (de cedro ou de e de til). Eram
cuidadosamente fechadas e barreadas nas juntas, evitando-se a entrada de humidade
e as contingências das longas viagens marítimas.
É aceitável inferir que
estes contentores cerâmicos necessários à lógica funcional industrial e de
engenho, pudessem assumir uma relação com o fabrico caseiro de açúcar (e com a técnica
de refinação ou preparação de outras doçarias e conservas de fruta). A
descoberta de consideráveis quantidades de formas em escavações arqueológicas
de instituições de assistência e religiosas na Madeira e nos Açores torna a
hipótese muito plausível. Vamos encontrá-las, por exemplo, no Colégio dos
Jesuítas no Funchal, na Misericórdia e no Convento da Piedade em Santa Cruz, no Mosteiro
de Jesus da Ribeira Grande e Recolhimento de São Gonçalo, em Angra do Heroísmo (SOUSA,
2011: 424 – 458; SOUSA, 2010: 42-51).
Ainda a este respeito,
é curioso observar que a alegada confecção de pães de açúcar era uma actividade
comum no quotidiano Seiscentista do Convento da Encarnação do Funchal,
verificando-se o seu envio regular para a vizinha ilha do Porto Santo (GOMES,
1995: 138).
Para os Açores, e a título
de curiosidade, com a novidade dos primeiros indícios cerâmicos encontrados em
contexto arqueológico (SOUSA, 2010: 42-51), a doçaria do Mosteiro de Jesus na
Ribeira Grande era muito afamada traduzindo-se em posterior tradição gastronómica:
“Foi ali que teve origem uma grande
indústria caseira da Ribeira Grande, a das amêndoas bicadas e ainda por aí
andam, em casa dalgumas confeitarias, bacias de latão em que se fabricam e que
pertenceram ao convento de Jesus. Quando este se extinguiu, freiras e criadas
se espalharam pela vila, ensinando o seu fabrico, que constitui ainda hoje uma
das nossas mais curiosas indústrias, A doçaria, como os ovos reais, as trouxas,
os bolos podres e as maçarocas de milho feitas com grande perfeição, era também
largamente exercida no convento e a arte doceira das freiras fez a delícia de
muitas gerações de gulosos não só desta vila, como também de Ponta Delgada”
(SILVA, 1949: 9).
Idêntica inferência se
admite para o território Continental com a ocorrência de formas de açúcar noutros
espaços religiosos, designadamente no Convento de Jesus em Aveiro e no Mosteiro
da Misericórdia da Ilha Berlenga. Note-se, para reforço da interpretação, as
frequentes dádivas de açúcar madeirense a partir de finais do século XV, e onde
por exemplo o Mosteiro de Aveiro recebeu, entre 1504 e 1505, dez arrobas de
açúcar (SALGADO, SALGADO, 1986: 8; BRAGA, 1992: 55-56).
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Fig. 4 – Pão do açúcar exposto
no antigo Núcleo Museológico “A Cidade do
Açúcar”, Funchal. Foto Miguel Nunes.
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Fig. 5.
Formas de pão de açúcar expostas no Núcleo Museológico de Machico – Solar do
Ribeirinho. Foto Manuel Nicolau.
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A
herança da doçaria conventual: a identidade do bolo de mel
Com a extinção dos
conventos. o receituário dos doces estende-se, com maior expressão, às casas
aristocráticas e às pastelarias. Uma das doçarias mais genuínas é o bolo de mel.
É fruto de uma conjugação de ingredientes existentes na Ilha na Madeira no
século XVI: o açúcar, o mel de cana e os frutos secos, e outros produtos
herdados da civilização europeia (manteiga, banha e farinha), a juntar as exóticas
especiarias da Índia, após a viagem de Vasco da Gama (SOUSA, 2008: 32).
Tradicionalmente o
receituário deste afamado bolo surge associado ao convento franciscano de Santa
Clara, e segundo os registos terá chegado à Madeira, em finais do século XV,
pela mão de frei Jordão do Espírito Santo (SOUSA, 2008: 37). No interior do
convento as freiras adicionaram ao bolo as especiarias do Oriente,
especialmente o cravinho. O historiador João José de Sousa apresentou
recentemente um receita aproximada do bolo de Mel do Convento de Santa Clara dos
séculos XV e XIX, que pela sua singularidade transcrevemos (SOUSA, 2008:
40-41):
“Ingredientes
Farinha
-4kg
Mel de
Cana – 3 L
(de qualidade nada de melaços!)
Açúcar de
Cana – 1,5Kg
Canela
Moída – 125g
Erva-doce
moída – 125g
Cravinho
moído – 30g
Manteiga
– 1Kg
Banha –
1/2Kg
Fermento
– 2 pães (em massa)
Nozes,
amêndoas, passas, cidra (a gosto de quem faze os bolos)
Levedura
– um pouco”
Algumas observações a
respeito da feitura deste bolo são interessantes. Anota-se que o forno de
cantaria mole não deveria estar muito quente, da mesma forma que o mel de cana
deveria ser bem aquecido sem, no entanto atingir a fervura. Os bolos eram
cozidos em recipientes do tipo folha-de-flandres, untados com manteiga e
ficavam a levedar durante três dias, antes da cozedura (SOUSA, 2008: 41). Trata-se
de um bolo normalmente confeccionado em Dezembro, por altura da Festa do Natal
e tradicionalmente partido à mão e comido acompanhado de vinho velho e licores.
À
parte deste bolo rico, e de produção em meios com maior poder de compra,
generalizou-se em estratos menos abastados a confeção de um género de bolo de
mel menos elaborado e para consumo imediato. Daí que seja popularmente
conhecido por “bolo de um dia”.
Por
alturas de Dezembro presenciámos o seu fabrico, confeccionado pela senhora Rita
Martins num forno de cantaria vermelha, na Freguesia de Gaula. Transcreve-se
parte de pequena crónica realizada a partir da cozinha de lenha: “Os ingredientes são misturados de forma
gradual, com abundantes frutos secos e cristalizados, não faltando o mel de
cana que dá nome ao bolo. As vasilhas são untadas com banha de porco, enquanto
o forno equilibra a temperatura ideal. Depois de varrido o forno, o bolo vai a
cozer, já com as amêndoas e com as nozes na face superior. Passado algum tempo,
o cheiro envolve a cozinha a lenha. Retiram-se os bolos do interior do forno e
deixa-se arrefecer. Mais tarde, estão prontos a consumir, até às festividades
dos Reis.” (SOUSA, 2009: 24).
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Figs.
6 e
7 – Feitura do “bolo de mel de um
dia” pela senhora Rita Martins. Fotos Élvio Sousa.
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Fig. 8
– Produtos típicos da Fábrica de Mel do Ribeiro Sêco (mel de cana, broas e bolo
de mel). Foto João Carlos Melim.
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Os
engenhos do século XIX e ressurgimento do mel de cana
O
mel, produzido nos engenhos de açúcar madeirenses é igualmente um produto
afamado, sendo muito utilizado na confecção de doçaria tradicional, que além do
bolo dá o nome às broas, exigindo apenas a erva-doce como especiaria.
No
século XIX a Fábrica do Ribeiro Sêco
(ou da Cruz de Carvalho), no Funchal, passa a especializar-se na produção de
mel-de-cana para a doçaria madeirense. Fundada em 1883 por por Aluísio César de
Bettencourt é na actualidade uma das referências madeirenses na produção de mel
de cana e de outras confeitarias (broas e bolo de mel). Num opúsculo editado
pela Fábrica do Ribeiro Sêco o
impressor esclarece que o mel da sua produção é distinto do melaço de cana, reunindo
excelentes qualidades terapêuticas como alimento profiláctico e regenerador do
organismo humano. Salienta a qualidade de iguaria natural muito rica em
proteínas (ferro, cálcio, magnésio, cobre e vitamina B1, B2 e PP).
Ao
abordar esta temática, é possível recuar no tempo e aos finais do século XVI
onde surgem as primeiras referências a uma espécie de broa de mel que,
infelizmente, caiu em desuso, e que segundo o relator (Manuel Constantino) os
autores que o antecederam nunca lhe fizeram menção: “Faz parte da alimentação dos madeirenses uma espécie de brôa ou bôlo
feito de pão torrado, que levam a coser na ultima cosedura da garapa, e a que deitam
por cima gemas de ôvo-piteu que tem a superior virtude de refazer as forças
perdidas e que muito contribuiu para a boa regularização das funções do
estomago e intestinos. São estes a meu vêr, particularidades curiosas da cana
de açucar e que tenho o prazer de dar em primeira mão, pois delas nenhum
escritor faz menção” (CONSTANTINO, 1930 [1599]: 22).
O costume de
condimentar as refeições com melaço de mel era habitual no meio madeirense no
século XVIII. O inglês John Payne, que visitou a Madeira por volta de 1750,
revelou um prato ao jantar que lhe parecia exótico: “Às vezes tínhamos mistura, um prato muito apreciado pelos naturais,
consistindo em peras, passas, pão e ovos, fervidos com salsa e outras ervas
(…). O segundo prato consistia sobretudo em uvas, cozidas como se fossem
plantas leguminosas, e misturadas com miolo de noz e doce de marmelo, inhame
cozido e assado, e uma espécie de fritura sobre a qual era derramado melaço.“ (SILVA,
2008: 50).
Voltando
à Fábrica do Ribeiro Sêco,
servimo-nos do depoimento de um proprietários João Carlos Fernandes Melim, para
conhecer as fases principais do fabrico do mel. A laboração inicia-se entre
Março e Abril de cada ano, com os inúmeros carregamentos de cana-de-açúcar e a
fase da espremedura nos engenhos para extração do sumo, conhecido localmente
por guarapa. Após uma primeira filtração segue-se o momento da cozedura e, em
seguida, uma nova depuração em cujo líquido desponta em filtros tendo por
escoamento pequenas torneiras de cobre dourado. A fase final do processo segue
parâmetros do “segredo da profissão” e que, em síntese, se resume à passagem da
guarapa para os evaporadores e posterior cozedura, resultando numa espécie de
néctar de cor escura (“xarope”) com sabor a mel-de-cana mas, ainda,
necessitando de um apuramento final com nova cozedura e concentração. Finalmente
o líquido repousa num reservatório metálico, onde arrefece naturalmente a fim
de ser comercializado (MELIM, 2005).
O
mel de cana é frequentemente utilizado à mesa dos madeirenses pelo Natal e Carnaval.
As razões desta sazonalidade devem-se, essencialmente ao fabrico do bolo, broas
de mel e malassadas. Mais recentemente a utilização do mel de cana tende a sair
do estereótipo sazonal, procurando-se uma utilização mais frequente na cozinha
turística e local. Numa publicação recente, o Chefe Octávio Freitas, partilha o
receituário com mel, no acompanhamento de entradas (salada “caprese” de
morangos Mozzarela de búfalo e mel-de-cana e figos grelhados com mel-de-cana); de
pratos de peixe e carne (cavala da Madeira com cebola crocante em mel-de-cana e
broa de milho amarelo e rins de novilho em crosta de mel-de-cana e puré de
castanhas) e de sobremesas (cassata de maracujá roxo com bolo de mel e
colheradas rubi de banana com mel de cana), (FREITAS, 2008: 44-175).
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Fig. 9
– Interior da Fábrica do Ribeiro Sêco na segunda metade do século XX. Foto
Arquivo Família João Carlos Fernandes Melim.
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Fig.
10. Filtros do engenho do Ribeiro Sêco. Foto João Carlos Melim.
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À mesa e ao balcão no
século XIX: banquetes e confeitarias
Para
uma visitante aristocrática inglesa como foi Isabela de França, que visitou a
Madeira no final dos anos vinte do século XIX, a especialidade madeirense resida
na “secção dos doces”. No convívio de
um baile de gala sublinhou a magnificência da ceia com pratos de peixe e carne,
tecendo rasgado elogios à doçaria: “É
imensa a sua variedade; fazem-nos de formas imaginosas e dão-lhes nomes
extraordinários. Chama-se ovos-moles um género opulento de leite-creme. Ovos
reais, quando eles ficam, com a aletria, em fios, e servem para decorar outros
doces. Vi um leão britânico feito de pão-de-ló, tão grande como um gato,
coroado de prata e com muitas estrelas pelo corpo; a juba e a extremidade da
cauda eram de ovos reais. No outro lado da mesa estava a águia americana
confeiçoada com os mesmos ingredientes. A uns bolinhos preciosos dão o nome de
beijos de frade. Certa massa em forma de sincelos denomina-se lágrimas. Mas de
todos os nomes o mais estranho é o de toucinho-do-céu aplicado em geral a umas
fatias, que também podem tomar aspecto de perna de porco ou até de um cordeiro”
(FRANÇA, 1970: 174-175).
O
século XIX é a altura da profusão da doçaria nas primeiras confeitarias
urbanas. As mais populares, a Felisberta na Rua das Pretas (fundada em 1873), a
Casa Payne na Rua da Alfândega, e outros “mestres” como T. Bentham (padeiro
inglês, fabricante de pastéis de doce e bolos para festas) e Reynaud & Cª
no beco de S. Emília, produtora de bolos de mel, queques, pudins e bolos de
família guarnecidos com alfenim (TRUEVA, 1984: 21; SARMENTO, 1941: s/p.).
O
eventual desaparecimento do espaço físico da prestigiada Confeitaria
Felisberta, sita ao n.º 65 da Rua das Pretas, e frequentada pela famosa Imperatriz
da Áustria Sissi, era visto como uma “onda
contagiosa de mau gosto”, no seguimento do destino de outros
estabelecimentos de referência da Cidade do Funchal, tais como o “Golden Gate”,
a “Indiana” e a “Havanesa”. Nos seus “Passos
na Calçada”, Nelson Veríssimo retrata a imagem actual: “Das queijadas, dos pastéis de amêndoas, E os
armários não têm frascos de compota, ameixa, amora…nem garrafas se sumo de
maracujá. Teias e pós, apenas.” (VERÍSSIMO, 1998: 19-20).
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Fig.
11. Aspecto da fachada da antiga Confeitaria Felisberta (1837), no Funchal.
Foto Élvio Sousa.
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Fig.
12. Interior de uma “venda” em
Santo António da Serra, Madeira. Desenho de W. S. Pitt
Springett Lit. – T. Picken, cerva de 1843. Propriedade: Museu Quinta das
Cruzes.
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A doçaria na mais
antiga Capitania dos Descobrimentos (Machico): a Casa de Chá Paradise e a
Confeitaria Mariazinha
Machico
surge referenciado nas fontes impressas como local de escolha na experimentação
inicial do cultivo, produção e venda do açúcar. Tanto Gaspar Frutuoso, como
Jerónimo Dias Leite transcreveram, no século XVI, esse pioneirismo: troxerão ha planta ha Machiquo que aprendeo
de maneira que ho primeiro asucre que se uendeo nesta Ilha da Madeira foi na
Villa de Machiquo donde se começou ha fazer e recolherão treze arrobas delle
que se vendeo cada arroba por cinquo cruzados que mais se comprou por mostra
pera se uer ha fermosura delle (...)”, (LEITE, 1947:102).
Terra
de fortes tradições açucareiras, e com engenhos a laborar nos séculos XIX e XX
às portas da antiga vila, conhecem-se duas referências incontornáveis da
doçaria regional em Machico: a Casa de Chá - Paradise e a Confeitaria
Mariazinha.
A
Casa de Chá, desaparecida nos anos 70, foi um projecto iniciado por Frederico
Soares e a esposa, Ester Dória, durante a Segunda Grande Guerra (CRISTÓVÃO,
1994: 69-71). Local aprazível, em ambiente achalezado, era muito apreciado pela
alta qualidade dos chás e doçarias: os batons de amendôa e de noz (as Madeleines), as joaninhas, os palitos de
cerveja e as bolas d´areia. Tinha grande reputação no meio turístico, e muito
apreciado por personalidades da cultura, das artes e da política, assim como da
alta sociedade e burguesia madeirenses.
Um outro espaço de
reputação da baixa machiquense, e tradicionalmente procurado por vários
estratos sociais, é a Confeitaria Mariazinha. Fundada nos inícios do século XX por
Maria Cândida Gomes começou pelo fabrico artesanal de pão e de alguns doces,
sobretudo pelo Natal, Páscoa, Pentecostes e festas de casamento. Dentre dos
produtos confeccionados menciona-se as capelas, uma espécie de pãozinho doce,
de forma arredondada, e que veio a desaparecer dos hábitos de consumo de
Machico (ANDRADE, 2012: s/p). Em meados dos anos vinte José Teixeira Galú e a mulher,
Maria Cândida Gomes, estabelecem-se com uma pequena padaria à Rua da Estacada e
que funcionava também como doçaria. Produziam manualmente bolos e doces secos (pão-de-ló,
bolo saboia, bolo manteiga, bolo de manteiga com cacau, bolo laranja, bolo
preto, broas de mel, broas de manteiga, rosquilhas de manteiga, rosquilhas
simples, rosquilhas fofas - com massa semelhante à das capelas); e ainda os bolinhos
de noiva (pouco doces), uma espécie de bolinhas duras que se atiravam aos
noivos à saída da igreja. As claras dos ovos, eram utilizadas para fazer
suspiros, adicionando açúcar e limão (ANDRADE, 2012).
Entre
os anos vinte e sessenta havia um espírito enorme de solidariedade nestes meios
semi-urbanos. Era usual deslocarem-se à Mariazinha, pessoas de menores recursos
para ali fazerem e cozerem gratuitamente os seus doces pela Festa do Natal e roda-viva
dos casamentos familiares. Também, as pessoas mais abastadas da antiga Vila de
Machico iam à confeitaria para cozer os bolos e doces que, na maioria dos casos,
já traziam preparados de casa. O facto desta pastelaria dispor de um forno de
pedra refractária de cantaria vermelha do Caniçal, que proporcionava uma
excelente cozedura aos produtos, era motivo de grande procura, ao que se
juntava as fragrâncias libertadas pela queima de ramagem de pinheiro bravo e ou
de eucalipto durante o aquecimento do forno. Possuidores de receituários de
família, os morgados confeccionavam os bolos de mel e alguns doces secos
considerados mais graciosos, consumidos por altura do Natal até ao Dia de Reis
(biscoitos coroados com fruta cristalizada e broas de mel coroadas com miolo de
amêndoa).
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Fig.
13 – Casa de Chá de Machico – Paradise. Foto Arquivo da Câmara de Machico.
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Fig.
14 – Rua Direita de Machico, local de grande azáfama de comércio e onde se
instalou nas proximidades (Rua da Estacada) a Confeitaria Mariazinha. Postal
ilustrado, propriedade Ricardo Caldeira.
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Doces caseiros e de
arraiais
Nos meios populares
generalizou-se a feitura de bolos e doçarias variadas. As mais conhecidas da
gastronomia tradicional madeirense sãos as broas e o bolo de mel, o bolo preto,
o bolo podre, o bolo família, as rosquilhas (biscoitos muito finos compostos
por dois fios de massa entrelaçados), o pão-de-ló, os pirolitos, as paciências,
as queijadas e os suspiros. Sobre estes últimos, muito comuns nos típicos
arraiais madeirenses, têm fama os produzidos manualmente pela senhora Isalina
Vieira Cardoso, que os comercializa no mercado local e festas populares.
Muito comuns são,
também, os doces ou compotas (amora, uveira da serra, marmelo, figo, abóbora
amarela, tomate, goiaba, entre outros) e os tradicionais rebuçados de funcho.
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Figs. 15 e 16 – Feitura dos deliciosos suspiros pela Senhora Isalina Cardoso. Fotos Élvio Sousa. |
Élvio Duarte Martins Sousa, Gaula, 14 de Maio de
2012
Artigo publicado no livro "Sabores e Saberes da Doçaria Portuguesa".
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