PATRIMÓNIO IMATERIAL


O Bolo na Cinza da Boaventura



"Longe vão os tempos em que a receita que se apresenta neste breve texto era, provavelmente, uma doce companhia dos manjares da população madeirense. De fabrico primitivo, talvez contemporâneo à confecção do bolo do caco, o Bolo na Cinza apresenta-se como um bem cultural imaterial, que corre o risco de desaparecer se não ficar lembrado na contemporaneidade.

Actualmente vivem-se épocas de globalização. A gastronomia não é excepção. A indústria alimentar massificou-se, as ementas da restauração são maioritariamente de gosto mais ou menos importado e o receituário madeirense, ao não estar inventariado, perde-se na oralidade dos tempos.

A origem desta arte culinária é tão antiga como o povoamento da Madeira. A vinda de "colonos" do Reino, acompanhou o enraizamento de saberes, conhecimentos e tradições, desde então adaptados à orografia e aos recursos naturais da época. Sabe-se, porventura, que na Antiguidade o povo hebreu tinha por hábito confeccionar um pão cozido sobre as cinzas. O registo vem escrito no Antigo Testamento, mais propriamente no Livro dos Reis.

Recentemente a UNESCO fez publicar a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, com o objectivo de proceder à salvaguarda desse património, que se revela pelas práticas sociais e económicas, tradições e expressões orais e conhecimentos ancestrais. A preocupação da UNESCO vai ao encontro da salvaguarda e da valorização daquele património que não ficou registado pela escrita e que se manifesta na oralidade dos tempos idos.

A confecção do Bolo na Cinza da Boaventura encarna, assim, esse património cultural imaterial que, ao não ser estudado e divulgado, corre o risco de se perder de forma irreversível. No registo desta memória local, devo ao Senhor Joel Freitas – personalidade atenta e com apurada sensibilidade no trato do património cultural – a origem e o conteúdo desta pequena notícia.



O Bolo na Cinza do Sítio do Serrão, Freguesia da Boaventura, é de confecção simples e de cozedura complexa e aprimorada. A massa utilizada é a mesma que o pão caseiro (farinha, batata-doce cozida, sal e o fermento), com a diferença de tamanho (pois confeccionam-se pequenos bolos), quando comparado com as tradicionais rosquilhas. Enquanto levedam, acende-se o lume para a produção da matéria-prima que dá o nome à receita: a cinza. Depois de lêvedo, a cinza é espalhada junto à lareira de modo a servir de cama para receber os bolos. Estes são colocados sobre a cinza em quantidades nunca superior a três unidades. A esta fase dá-se o nome de “acoalhar”.

Depois, processa-se a cozedura até que a superfície ganhe a côdea desejada. O tempo de cozedura varia entre duas ou duas horas e meia, havendo a necessidade de virar repetidamente as faces do bolo para acabar de tostar na cinza renovada. Depois de “acoalhado” é empilhado nas proximidades do lar para acabar de cozer.


Antigamente a comida era feita à lenha. As cinzas resultantes da fogueira do almoço eram cuidadosamente aproveitadas para a cozedura dos bolos improvisando-se, também, uma segunda fogueira junto ao lar. Normalmente era uma receita confeccionada antes do Entrudo, principalmente na “Quinta de comadres”, “Quinta de compadres”, no “Domingo gordo” e no próprio dia de Entrudo. Nos tempos em que o colesterol não acusava nas análises clinicas, o acompanhamento do bolo era farto. Cuidadosamente aberto ao meio, recebia um “lenho de carne” (fatia de carne gorda e couro do lombo do porco). Ainda há que se lembre do cheiro e da dose: “o lenho de carne era normalmente tão gordo que a “graxa” (gordura do porco depois de derretida) escorria por entre os dedos à medida que apertavam o bolo para comer” (Joel Freitas, no registo oral).

Élvio Duarte Martins Sousa, Publicado na revista Rugas, Fevereiro de 2008

Sem comentários:

Enviar um comentário