segunda-feira, 2 de julho de 2012

O Projecto de Musealização da Rota da Cal, São Vicente, Madeira

O Projecto de Musealização da Rota da Cal, São Vicente, Madeira. *
Élvio Sousa e Liliana Neto

(texto síntese de acordo com esta referência: "O Projecto de Musealização da Rota da Cal, São Vicente, Madeira”, em co-autoria com Liliana Neto, Actas del Quinto Congreso Internacional Minería y Metalurgia Histórica en el Suroeste Europeo, (Léon-España), Libro de homenaje a Claude Domergue, editores Josep M. Mata Perelló; Lisard Abat; Maria Fuentes Prieto, 19-21 de Junio de 2011, pp. 779-784.
Fig.1

0.    Introdução
O Núcleo Museológico – A Rota da Cal apresenta-se com uma variedade de interesses, quer do ponto de vista do património natural quer do ponto de vista do património construído e cultural. Localizado no Sítio dos Lameiros (Fig.1), Concelho de São Vicente, Ilha da Madeira, este núcleo engloba uma área aproximada de 12 000 m2 onde, a par de toda a beleza paisagística local, se encontram duas pedreiras de pedra calcária, um forno de cal e outros imóveis de apoio à produção agrícola, nomeadamente palheiros, poios e levadas, elementos bastante característicos da paisagem madeirense.

Este núcleo é um espaço museológico, de iniciativa privada, de vocação cultural, educativa e turística.
As primeiras referências históricas à produção de cal em São Vicente remontam ao século XVII, tendo havido vários fornos de cal neste concelho. O Forno de Cal do Barrinho possui licença de laboração datada de 1902, o que não significa que já não laborasse antes disso.
O afloramento calcário do Barrinho é a única ocorrência deste tipo de geologia na Ilha da Madeira. A pedra de calcário proveniente das pedreiras do Barinho era utilizada para diversos fins, nomeadamente no calcetamento de pavimentos, em pias baptismais e em pedras de moinhos, produção de cal, entre outros.
A pedra, depois de transportada para junto do forno, era cozida para a produção da cal. A cal, por seu lado, permitia uma diversidade de utilizações, que passa pelo uso em argamassa e pintura na construção civil, nos cemitérios e na agricultura.
Este forno de cal laborou até à década de 60 do século XX, altura em que a produção entrou em decadência e o forno foi abandonado. No ano de 2000 o actual proprietário e empresário, Senhor Joel Freitas, iniciou a sua recuperação, tendo aberto este núcleo ao público no dia 1 de Março de 2008.
1.    Objectivos
O objectivo geral do projecto de musealização do Núcleo museológico Rota da Cal é a preservação e valorização dos testemunhos que atestam o processo de fabrico da cal no Sítio do Barrinho, em São Vicente.
Este objectivo geral reflecte-se uma série de objectivos específicos, a saber:
-  Promover a compreensão do processo do fabrico da cal e da sua importância histórico-económica e social;
-  Potenciar, do ponto de vista museológico, turístico, formativo e económico, as ocorrências patrimoniais que compõem o espaço do núcleo;
-  Investigar, conservar, interpretar e valorizar o património industrial como marca de identidade local;
-  Contribuir para a melhoria da qualidade de vida da população, em cidadania, incentivando o sentimento de auto-estima e identidade mediante o estudo, a recuperação e a valorização da sua herança cultural;
-  Contribuir para a revitalização da economia local, assente em linhas programáticas do turismo cultural;
-  Incentivar a vocação formativa e educativa na preservação da memória colectiva do património cultural, estabelecendo uma rede de contacto com a população local;
-  Colaboração com outras entidades ligadas à temática tradicional da cal, de modo a aprofundar os aspectos tecnológicos de interesse para o enriquecimento do programa interpretativo.
O Núcleo Museológico – A Rota da Cal foi criado no sentido de preservar a cultura local, proporcionar educação e formação, considerando a memória colectiva intrínseca ao local e promover e divulgar o património local, pelo que o público-alvo inclui a população local, a população escolar e a população visitante – turistas.
Fig.2

2.    Método
No projecto de musealização do sítio houve, por parte do proprietário a sensibilidade parta reunir uma equipa de trabalho multidisciplinar onde se incluíram pessoas da História, da Arquitectura, da Arqueologia, da Geografia, da Geologia e do Design., o que se revelou, com certeza, uma mais-valia para o projecto.
Pretendeu-se para o Núcleo Museológico - Rota da Cal um programa museológico que possibilitasse a compreensão do processo de fabrico da cal, da sua relação com o meio físico e humano e do contexto histórico e económico local e regional.
Os conteúdos do guião do núcleo assentam na componente tecnológica e histórica da transformação do calcário, resultando de várias etapas consideradas, nomeadamente a reunião de uma equipa interdisciplinar (Historia, Geologia, Arqueologia, Geografia, Design, Arquitectura e Arquitectura Paisagista e Turismo), o levantamento bibliográfico, documental, iconográfico e cartográfico, o levantamento da tradição oral, a realização de trabalhos arqueológicos, a realização de trabalhos de recuperação e valorização do conjunto, o requerimento de Instrução para o Registo Patrimonial de Classificação, a produção dos conteúdos museológicos e a promoção e divulgação pública do projecto.
Durante os trabalhos de recuperação e produção de conteúdos museológicos, procedeu-se à realização de uma cozedura de pedra calcária no Forno do Barrinho, numa perspectiva de arqueologia experimental (Fig.2). Esta actividade implicou as várias etapas do processo, designadamente, a remoção de pedra de uma pedreira local e seu transporte para junto do forno, o transporte de lenha e de água, o carregamento e preparação do forno para a cozedura, a cozedura propriamente dita, o descarregar o forno, o espalhar da pedra e o regar a pedra de calcário cozida para provocar a sua reacção.
Fig.3

A estratégia museológica deste projecto pretendeu a valorização e a preservação in situ, numa linha de intervenção minimalista e contemporânea (Figs.3 e 4), procurando uma suavidade de imagem e tendo em atenção os indicadores de paisagem natural e cultural. Seguiu-se uma leitura de construção versátil e reversível, reforçando os valores de identidade do sítio e a manutenção da autenticidade da memória individual e colectiva.

Fig. 4
Ao nível da segmentação temática da exposição, o Núcleo Museológico – Rota da Cal apresenta ao visitante três núcleos principais que são os Valores Naturais, o Património Rural e a Produção e a Comercialização da Cal (Fig.5).
3.    Os conteúdos do Núcleo Museológico Rota da Cal
O Núcleo Museológico apresenta-se com uma variedade de interesses que contemplam o património natural e o património construído e cultural. Estes interesses são ampliados pelo valor do sítio enquanto conjunto, pelo que este núcleo mereceu a classificação de Conjunto de Interesse Público por parte da Secretaria Regional do Turismo e Cultura, onde é sublinhado o “relevante valor arquitectónico, histórico e etnográfico”.

Fig.5
3.1.   O património natural
No que concerne ao património natural, salientam-se duas especificidades que fazem deste sítio uma singularidade, designadamente, a ocorrência calcários recifais, de tufos castanho-avermelhados e de aglomerados, bem como fósseis marinhos. Este afloramento de calcários marinhos e fossilíferos remonta ao Miocénico (mais de 5 milhões de anos) e os fósseis marinhos (nomeadamente, lamelibrânquios, gastrópodos, equinídeos e crustáceos) aparecem com frequência.
O património natural do Núcleo Museológico- Rota da Cal vai para além da componente geológica respeitante ao afloramento calcário, único na ilha, como já foi dito. O núcleo encontra-se parcialmente integrado no Parque Natural da Madeira, o que lhe confere uma maior riqueza em valores naturais.
Ao nível da vegetação, salienta-se a presença de espécies da Floresta Laurissilva – Património Mundial da UNESCO – como o loureiro (Laurus azorica), o vinhático (Persea indica), o sanguinho (Rhamnus glandulosa), a uveira da serra (Vaccinium padifolium), o folhado (Clethra arbórea), o pau branco (Picconia excelsa), e a faia das ilhas (Myrica faya). Esta área, de transição entre a floresta e as áreas agrícolas, é visitada por espécies de avifauna que são endémicas da Madeira, como o Pombo Trocaz (Columba trocaz), o tentilhão (Fringilla coelebs madeirensis) e o bisbis (Regullus ignicapillus madeirensis).
3.2.   O património rural
Integrado em ambiente rural, o núcleo da Rota da Cal preserva alguns imóveis e características paisagísticas típicas da paisagem rural madeirense como os palheiros, os tradicionais poios, as levadas, um poço e um fio (Fig.6).
Fig.6
A vereda que percorre este espaço mantém a antiga configuração que remonta ao tempo em que era fundamental para a circulação de pessoas, para o transporte da matéria-prima para o Forno da Cal, bem como para o transporte de produtos agrícolas. Hoje esta vereda proporciona-nos um belo percurso que nos permite apreciar todas as belezas que o sítio tem para oferecer.

3.3.   A Produção e a comercialização da Cal
A temática da produção e comercialização da cal é a mais relevante neste espaço museológico. Este tema está presente na área exterior, incluindo as duas pedreiras de calcário, de secção semicircular, e na Casa do Forno da Cal, onde, além do forno, encontramos expostos outros elementos respeitantes à produção e comercialização da cal e sua importância sócio-cultural.
A casa do forno apresenta uma planta rectangular com uma cobertura de telha e é construída em alvenaria de pedra parcialmente rebocada, no interior e exterior, utilizando pontualmente pedra de calcário originária da pedreira.
A estrutura do forno é de planta cilíndrica executada através de um aparelho de pedra (tufo de lapilli), com uma altura aproximada de 5,30 metros, formando um cone invertido. A porta ou boca apresenta-se em forma de arco abobadado que se estreita em direcção à caldeira, onde se situava a grelha que segurava a pedra e a lenha.
Do ponto de vista tipológico é um forno de cozedura mista, alimentado por camadas alternadas de pedra de calcário e lenha ou carvão de pedra.
Antes dos trabalhos de recuperação da casa e do forno, foram realizados trabalhos arqueológicos, entre Novembro de 2004 e Março de 2005 (Fig.7), sob a responsabilidade do CEAM – Centro de Estudos de Arqueologia Moderna e Contemporânea.[1]

Fig.7
Os trabalhos arqueológicos revelaram um piso primitivo, em calçada, valas de fundação de construção anterior e uma estrutura circular implantada no solo.
Na Casa do Forno da Cal encontram-se expostos diversos utensílios e ferramentas, outrora utilizados nas várias etapas inerentes ao processo de produção e algumas referências históricas às famílias que possuíram o forno ao longo dos anos e aos trabalhadores que aqui laboraram.
O Núcleo Museológico - A Rota da Cal conjuga, harmoniosamente, o meio natural com a ocupação humana, oferecendo-nos uma magnífica beleza paisagística, proporcionada pela vegetação e panorâmicas locais, ao mesmo tempo que nos oferece um produto cultural e histórico, com as duas pedreiras de pedra calcária, o forno de cal e os outros imóveis de apoio às actividades agro-pecuárias, que retratam a ruralidade madeirense.

Gaula, Junho de 2008

* Síntese da comunicação da apresentada ao V Simposio internacional sobre minería y metalurgia históricas en el suroeste europeo, realizado em Leon, Espanha, entre 19 e 21 Junho de 2008. O projecto integral e pormenorizado do programa museológico poderão ser consultados na sede da Associação Rota da Cal, em São Vicente ou por solicitação aos autores deste texto.



[1] Cfr. Élvio Duarte Martins Sousa, “Trabalhos Arqueológicos no Forno de Cal do Barrinho, São Vicente, Ilha da Madeira”, Arqueologia Industrial, Vol.1, n.º1 e 2, Braga, pp.5-14.

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