segunda-feira, 21 de maio de 2012

Fazer falar o silêncio da terra habitada



Fazer falar o silêncio da terra habitada


Púcaro de cerâmica comum do século XV, da área urbana de Machico, Madeira. Foto: Miguel Nunes.

Qualquer tentativa de sistematizar a problemática cronológico-cultural da arqueologia na Madeira resumir-se-á, efectivamente, ao momento preciso da humanização do espaço insular pelos portugueses no século XV. A criação das condições de habitabilidade, num espaço quase virgem, conduziu à construção de infra-estruturas básicas ao ritmo do povoamento implementado, traçando-se caminhos, levantando-se casas e igrejas, construindo-se mercados produtores de bens e serviços.

A diacronia do tempo habitado reserva-nos, então, no espaço quase sempre entulhado, um inegável observatório dos restos materiais das gentes do passado. Um acervo, digamos, quase mudo por natureza, mas que a interpretação e a inferência arqueológica em pouco tempo “descodifica” para um plano mais visível do conhecimento histórico. Deste modo, aquilo que aos olhos comuns parecem cacos, pedras e ossos, aos olhos de um profissional de arqueologia são documentos fundamentais para a construção da história do quotidiano no tempo dos Descobrimentos. Assim, a arqueologia da Época Moderna na Madeira percorre um horizonte de investigação sui generis do ponto de vista da estratificação da cultura material observada, pois, todos os materiais arqueológicos identificados nos estratos mais antigos serão, porventura, contemporâneos ou posteriores ao achamento e ao povoamento do arquipélago (SOUSA, 2006:35-40). O achamento serve-nos, assim, de terminus post-quem – um marco no tempo para além do qual as datações se deverão orientar.

O objectivo essencial deste breve artigo, como o próprio título sugere, é o de relevar a validade desses cacos e dessas pedras na reconstituição de um passado material que nos aparece sedimentado no solo e no subsolo madeirense. A noção elementar, na técnica e no método arqueológico, de que debaixo da contemporaneidade das nossas casas e das nossas ruas existem restos de uma cultura material que nos antecedeu é, na verdade, o raciocínio lógico que serve de contextualização para a leitura do passado soterrado. Com ele, ou seja, com a complexidade desse mundo material, sedimentado aos nossos pés, podemos chegar sem esforço ao paradigma de um estado normativo incipiente, com a agravante de não estar competentemente assegurado o acompanhamento técnico dos espaços com elevado interesse histórico regional. Como a perda não se resume, naturalmente, ao dogma “material”, somem-se irremediavelmente património, informação cultural e dados científicos, de elevado interesse nacional e mesmo internacional.

Passados mais de cinco anos após a promulgação da Lei N.º 19/2000 [1] de 10 de Agosto, a situação jurídica e institucional da gestão da arqueologia regional passou, infelizmente, à “cota zero”, utilizando uma expressão topográfica muito em voga na conceptualização arqueológica. Sem técnicos habilitados ao nível da tutela, sem requerimentos viáveis do ponto de vista técnico e científico, continua-se à sombra de um desajustado Artigo 9.º de um ido Decreto Legislativo Regional N.º 23/91M que subscreve que na Madeira “compete à Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração autorizar escavações arqueológicas, devendo sempre a Direcção Regional dos Assuntos Culturais acompanhar os trabalhos nas respectivas estações, procedendo também ao inventário dos bens móveis de interesse arqueológico”.



Os dados arqueológicos e a construção do conhecimento

Um reconhecido arqueólogo norte-americano, Charles Orser, considerou os artefactos (dados arqueológicos, na nossa perspectiva conceptual) o “pão” e a “manteiga” da pesquisa arqueológica.[2] A analogia serve, a este título, para sublinhar que os dados arqueológicos (os vestígios materiais do passado, na forma de objectos ou estruturas) são o ponto de partida para o estudo do passado. A partir deles, o arqueólogo aproxima-se do domínio do entendimento social, económico e cultural, do indivíduo ou do colectivo.

O encontro do arqueólogo com a complexidade da sedimentação de terras, de detritos, de objectos e de estruturas concede-lhe a “descoberta” de um mundo que já não é o seu – um mundo de coisas tipologicamente desconhecidas, provavelmente com outros hábitos, outras modas e outros “sentimentos”. Assim, parafraseando Jorge Alarcão,[3] a função da arqueologia será, entre outras, a de descortinar a imediatez do objecto e desvendar-lhe o significado. A partir dele, pode o investigador – através da interpretação, que exige raciocínio e ciência – alcançar o conhecimento do Homem e da sociedade que o fez e usou.

Neste domínio, a inferência constitui o momento essencial do raciocínio arqueológico. Ora, se um fragmento de uma forma cónica de pão de açúcar se apresenta como um dado arqueológico, a dedução desse objecto cerâmico como um vestígio material do fabrico do açúcar revela-nos um facto, com implicações sociais, económicas e culturais. Deste modo, o arqueólogo constrói acontecimentos, tendo por base os vestígios materiais observados, que, por sua vez, são extensões de coisas e acções feitas num determinado momento. Da mesma forma que um historiador se baseia, para o estudo do passado, essencialmente, em documentos escritos, também o arqueólogo, com base nos dados materiais do passado, contribui na “reconstituição” dos acontecimentos históricos.

A interpretação arqueológica pode conduzir a leitura para um horizonte mais amplo, da História Social e Económica. Tomando o exemplo do púcaro de cerâmica comum do Século XV da ilustração que acompanha o texto, a interpretação pela inferência, independentemente de uma leitura técnica (natureza e composição das pastas, texturas e superfícies) ou estilística (aspecto decorativo, tonalidades, etc.), poderá atestar que a presença destas cerâmicas nas escavações é um testemunho da rede de relações comerciais (importação de cerâmica do continente português e da Europa) – e, neste sentido, a interpretação arqueológica aproxima-se de uma perspectiva de História Económica. Portanto, a aproximação à História Social reflecte-se na presença destas peças cerâmicas em espaços habitacionais de elevada estratificação social, daí que o dado material serve para deduzir a posição social do proprietário.

A análise macroscópica do objecto permite, também, recolher outras informações pertinentes relativamente à sua função e seu uso quotidiano. Neste aspecto, há que ter em consideração a cor e o estado das superfícies, os acabamentos, os pormenores decorativos, a cozedura, a textura da pasta e a presença dos elementos não plásticos. A mesma figura, por exemplo, mostra as paredes externas do púcaro ligeiramente carbonizadas. A observação autoriza, à primeira vista, duas possíveis indicações acerca do tempo de vida ou duração dessa peça. Em primeiro lugar, poderá atestar que o recipiente teve, na sua utilização quotidiana, uma relação directa com os serviços de louça de ir ao fogo, justificando-se o queimamento das suas superfícies externas. Em segundo lugar, o estado da parede externa poderá estar relacionado com o eventual abandono da peça, destituída da sua utilidade original, e, provavelmente, tendo como destino final uma área de entulho/lixeira, onde se faziam queimadas frequentes.

A interpretação dos dados arqueológicos conduz à inferência de leituras individualizadas, em estreita relação com as actividades quotidianas (alimentação, cozinha, comércio, vestuário, mobiliário, arquitectura dos espaços, entre outras). No caso abordado, o da cerâmica comum, a construção do conhecimento poderá ser encarada não só pela perspectiva de utilização social e económica mas, também, pela relação de uso e funcionalidade do objecto ou do imóvel no quadro das tarefas do dia-a-dia da Época Moderna ou Contemporânea. A esse nível, podemos chegar ao conhecimento dos hábitos e dos comportamentos quotidianos, com o estabelecimento de um quadro evolutivo da cultura material e da tipologia dos espaços construtivos. Até lá, continuamos, persistentemente, a validar a informação material pois, embora esta não carregue geneticamente um texto a duas ou três dimensões, tem a subtileza de se fazer “falar” no silêncio da terra habitada.


Élvio Duarte Martins Sousa


Bibliografia


ALARCÃO, Jorge (2000) – A Escrita do tempo e a sua Verdade. (Ensaios de Epistemologia da Arqueologia), Coimbra, Quarteto Editora.


ORSER, Charles (1996) – A Historical Archaeology of the Modern World, New York, Plenum Press.


SOUSA, Élvio Duarte Martins (2006) – Arqueologia da Cidade de Machico. A Construção do Quotidiano nos Séculos XV, XVI e XVII, Machico, CEAM – Centro de Estudos de Arqueologia Moderna e contemporânea.


SOUSA, Élvio Duarte Martins; NETO, Liliana e BRAZÃO, Fernando (2005) – O Aprendiz de Arqueólogo – A Lenda de Machim, Funchal, GIJDP/CEAM.


Texto publicado no livro: “Fazer falar o silêncio da terra habitada”, E depois? Sobre a cultura na Madeira, 1.ª edição, Funchal, Universidade da Madeira, 2005, pp.83-90.


[1] - Legislação que reconhece a competência dos governos regionais para a adopção de medidas necessárias e indispensáveis à realização de trabalhos arqueológicos, terrestres e subaquáticos e para o levantamento, estudo, protecção, conservação e valorização do património arqueológico, móvel, imóvel e zonas envolventes.

[2]  - “In many ways, artifacts are the bread and butter of archaeological research. Archaeologists have a strong commitment to interpreting the daily activities of the men and women lived in past societies, but they never forget that their field is largely a science of things.”(ORSER, 1996:108).

[3] - Jorge Alarcão, A Escrita do Tempo e a sua Verdade. (Ensaios de Epistemologia da Arqueologia), Coimbra, Quarteto Editora.

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